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Disse Fernando Pessoa que o melhor do mundo são as crianças. Bastava-me entrar num restaurante e calhar ao lado de um casal com filhos para pensar como foi possível alguém ter escrito uma coisa dessas sobre crianças e não, por exemplo, sobre cães!
Antes de ter filhos nunca lhe dei grande razão. Ainda que esses sentimentos não tenham de todo desaparecido, consigo sentir grande apreço por essas criaturas pequenas. Têm qualidades que reconheço nos cães: aprendem depressa e por imitação, saltam de contentes quando os levamos à rua, dão-nos beijinhos quando lhe oferecemos guloseimas e conseguem sempre surpreender-nos.
As crianças vêm com alguns bónus: falam, têm humor (negro, mas têm! Só riem de quem cai e se aleija…) e vêm munidos de um super-poder: a maravilhosa capacidade de simplificar as coisas. Se juntarmos então o facto de esta ser do sexo masculino, este poder consegue duplicar!
E é um exemplo desse super-poder que quero partilhar. Uma das situações que aguardava com mais expectativa era o momento de explicar ao meu filho de cinco anos que já não tinha trabalho. Não era coisa que me tirasse o sono, (esse, quem mo tira é a criatura mais pequena cá de casa), mas andava com dúvidas de como abordar o assunto. Resolvi esperar que ele o fizesse. Não tardou. No segundo dia perguntou: “Mãe, hoje não vais trabalhar?"
“Não, fico em casa.”
“Mas não me vais buscar cedo, eu quero brincar com os meus amigos!”, alertou logo.
Pois claro, eu aqui a consolar-me pensando que, pelo menos agora, ia ter tempo para os meus filhos e ele vem com regras bem definidas. Ficámos por aqui.
Esta conversa não o satisfez e o grande dia enfim chegou. Vínhamos de carro da escola para casa e ele atira: “Porque é que já não vais trabalhar?”
“Já não vou trabalhar mais para aquele sítio, agora fico em casa. Mas assim deixo de ganhar dinheiro”, disse tudo de uma vez para ver como ele processava a informação.
“Então, se quiser alguma prenda tenho que pedir ao pai?” (Lá está, o início da simplificação).
“Podes pedir aos dois”. Na cabeça dele esta resposta não fez grande sentido. Por isso, continuei: “Fico em casa a escrever histórias para ti”.
“Que bom!”
“Tens mais alguma pergunta?” até tremi pelo que podia vir a seguir. Como ia responder sem dizer demasiado?!
“Sim. Quando é que saímos do carro que eu quero fazer cocó?”
Muito bem. Não me lembraria de terminar assim uma conversa deste teor, mas não me desagradou. Eu disse-vos: se juntarmos a maravilha de ser criança ao facto de ser do sexo masculino, tudo fica mais simples!
“Tem uma mensagem nova”… Fui ver. Era o desemprego. “Bolas, agora vem por e-mail?”, perguntei surpreendida.
“Ah, pois, e não vir por uma rede social e seres obrigada a “botar” um Like, já tens muita sorte!”, diz a Almeida.
Foi assim que soube que ia ficar sem emprego. Eu e umas boas centenas de “alguéns”. Catorze, dezassete, vinte, trinta anos de trabalho, fiel ao mesmo empregador. Recebe-se uma mensagem por e-mail e já está: “deixou de haver lugar para si”.
Durante uma semana, evita-se olhar para a caixa de e-mail, não fosse o diabo tecê-las. Mas nesta história o diabo tem nome, cara e responsabilidade. Já as centenas de “alguéns” são anónimas, gente sem rosto, marcadas com um número (esse sim único!). Gente com família, com contas para pagar, com futuros pensados e sonhos acalentados.
Ora, se as pessoas fossem números, não lhes chamávamos “pessoas”. Mas há sempre alguém disposto, em troca de uns tostões, a esquecer tudo o que aprendeu na faculdade para aplicar o que pode facilmente aprender lendo um dos livros de J K Rowling: transformar as pessoas em números.
Mas aqui vamos humanizá-los, dar-lhes alguma vida. E porque não gosto de números, mas de palavras e gentes, arrisco-me apenas numa estatística: a maioria dos “alguéns” são mulheres, com filhos: a divorciada com três filhos, a casada com o marido desempregado, a mulher do que ainda lá trabalha, a que pariu há menos de um ano.
Gente que, ao fim de décadas, vai começar de novo, não do zero, porque carrega às costas experiência (de produzir mesmo sem recompensa, experiência de sorrir quando não tem vontade, de levar o filho à escola com febre para evitar falatório).
Este fechar de porta será um abrir de janela, uma janela de oportunidade. Reflectir sobre o que se fez e o que se quer fazer, o que se foi e se queremos realmente continuar a ser.
Agora vou fazer parte da estatística, agora vou ser uma das muitas preguiçosas, como lhe chama o Governo, que não trabalha porque não quer. Coitadinho do Crocodilo.